A presença no vazio
Por Gisele Cova
Em meio à dificuldade de se definir o conceito “vida”, os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela assumem que a principal característica do ser vivo é sua capacidade de autopoese. Esse é um termo que reside em raízes gregas, sendo que auto refere a si mesmo e poien, tal como em poesia, refere-se a fazer. Em outras palavras, a capacidade de fazer-se a si mesmo é uma característica fundamental para classificar algo como um ser vivo.
Lynn Margulis, bióloga norteamericana, valoriza e concorda com a leitura dos chilenos ao destacar a relevância de relações de cooperação entre os seres vivos, enquanto tantos outros, como Charles Darwin, valorizavam a competição. Em outras palavras, o reconhecimento da ocorrência, permanência e manutenção dinâmico de um equilíbrio interno dizem mais sobre um ser poder ser considerado vivo do que outras características, como a mera capacidade de replicação que um vírus é capaz de executar.
Contrariando o caos, os organismos vivos sobrevivem em um sistema absolutamente regulado. Há desvios, sobras e carências, mas há, sobretudo, equilíbrio. Movimento. O estômago cuida de regenerar seu revestimento interno continuamente. O fígado se refaz. Os átomos seguem seu curso, entram e saem dos corpos: a molécula de oxigênio, por exemplo, é absorvida pelos alvéolos pulmonares, transportada pelas moléculas de hemoglobina até chegar nos tecidos do corpo. Ali, há seu consumo num processo reconhecido como respiração celular que libera energia a partir da quebra da glicose, fazendo uso daquela molécula de oxigênio, até que os oxigênios são utilizados para a síntese de moléculas de água. A energia é reciclada. Na medula óssea vermelha, os glóbulos vermelhos, os glóbulos brancos e as plaquetas são continuamente produzidas.
Movimento. Autopoese.
De modo análogo, um evento se deu em uma das ilhas de Galápagos, famoso arquipélago - seja por suas características peculiares, seja por ter sido um ponto de estudo de Darwin em 1835, em sua longa viagem no Beagle. O arquipélago fica no Pacífico, a 1000 km do Equador e é considerado Patrimônio Natural da Humanidade. Em 17 de maio de 2021, segunda-feira pela manhã, mais precisamente às 11h20, enquanto tubarões, tartarugas e golfinhos seguiam indiferentes ao que se passa fora d’água, mergulhadores registraram uma significativa mudança na paisagem.

Arco de Darwin no primeiro plano. Ao fundo, a Ilha de Darwin
Imagem de: https://socientifica.com.br/arco-de-darwin-acaba-de-colapsar/
Acesso em 28 de maio de 2021
Uma das 234 ilhas, ilhotas e rochedos de Galápagos, é a ilha identificada justamente como Ilha de Darwin e apresenta, em seu entorno, o famoso Arco de Darwin. Uma formação rochosa que conta com dois pilares e uma firme conexão, como se fosse uma ponte entre eles. Um arco monumental que recebe olhares de turistas há muitos anos e vento constante há muito mais tempo. Desabou, deixando os dois pilares. A paisagem se modificou. Os tubarões, tartarugas e golfinhos não se abalaram.

Foto publicada no Twitter do Ministério do Ambiente e Água do Equador
quando da queda do Arco de Darwin, Foto de Hector Barrera
Imagem de: https://twitter.com/Ambiente_Ec/status/1394397390384341004
Acesso em 28 de maio de 2021
Esse evento geológico ilustra o movimento vivo das rochas. Não evidencia todo o ciclo de metamorfose, mas explicita um passo nesse ciclo. É interessante observar não apenas o movimento do planeta em si, mas as reações humanas. Diferentemente das marinhas, a nossa espécie manifesta, por tantas vezes, assombro e tristeza ao constatar esse tipo de movimento. Quantas reações de lamento perante a queda do Arco de Darwin não foram registradas nas redes sociais? Talvez haja aí o apreço pela moldura para a foto ou a resistência diante da transitoriedade imanente da vida.
Em se tratando da segunda hipótese, cabe considerar a ingenuidade humana perante a finitude. Lamenta-se a perda do Arco, da paisagem. Provavelmente, a depender da reação do “público”, as agências de turismo de Galápagos devem pensar em alternativas. Há, entretanto, que se fazer um convite: por que o olhar não pode ser ajustado para acompanhar o lastro da mudança? Para presenciar a memória do Arco e, então, reconhecer a ausência daquela ponte que parecia inabalável? A moldura da imaginação nos leva ao encontro dos pilares, que ainda permanecem, por ora estão ali, contrariando o caos, resistindo ao vento. O Arco de Darwin não existe mais, mas a memória concreta registrada em seus pilares resiste.
De toda forma, também indiferente às nossas reações, as rochas seguem seu rumo. A metamorfose também se observa no planeta. Assim como um ser vivo se refaz continuamente enquanto houver vida, o planeta apresenta a mesma potência: a de se refazer, de se reinventar. A depender do grau de interferência humana, a Terra é igualmente capaz de manter sua autopoese.

Ilustração feita por Humberto Maturana
Biólogo que se foi agora, aos 92 anos de idade, também em maio de 2021,
11 dias antes da mudança na paisagem de Galápagos.
A Busca por vida extraterrestre: uma perspectiva química
Por Andrés Navarro

Recentemente, muitas notícias vêm sendo divulgadas a respeito da busca pela potencialidade de vida em outros corpos celestes, além da Terra e para além de nosso Sistema Solar. Essa busca, entretanto, só é possível em resposta à uma pergunta norteadora anterior: que tipo de vida estamos procurando?
Desde o século XIX, as Ciências da Natureza perceberam que a materialidade das substâncias que compõem os seres vivos na Terra é fundamentalmente feita de carbono. As biomoléculas que dão base material à vida - bases nitrogenadas, proteínas, lipídios, carboidratos, etc. - têm seu esqueleto principal formado por grandes cadeias de carbono, às quais se ligam átomos de outros elementos químicos, como hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre. Não é um exagero afirmar que a vida tal qual conhecemos na Terra é derivada das propriedades do carbono. O que faz esse elemento químico ser tão especial?
O carbono é conhecido da humanidade desde a pré-história. Seu nome é originário da palavra latina carbo, que literalmente significa “brasa” ou “carvão”. Tal denominação não podia ser mais adequada, uma vez que a queima de gravetos, galhos e palha ressecada dá origem à brasa, à fuligem e às cinzas, materiais predominantemente formados por carbono. Desde que a humanidade dominou o artifício de manipular o fogo, o carbono acompanha sua história.
Sob o referencial moderno da Ciência, o carbono é um elemento químico reconhecidamente capaz de formar longas cadeias estáveis a partir de ligações sequenciais entre seus átomos, podendo originar uma miríade de possibilidades de moléculas pequenas, grandes, lineares, ramificadas e cíclicas, ou uma composição entre elas. Essa grande diversidade de cadeias carbônicas permite que sistemas químicos complexos, resultantes de milhões de anos de combinação casual entre compostos com carbono e outros elementos químicos, espontaneamente se organizem num organismo capaz de se autogerar e de se autorreplicar em algum nível, inaugurando algumas propriedades daquilo que denominamos vida.
Ainda que o desenvolvimento da vida terrestre deva muito às propriedades do carbono, existem outros fatores que igualmente determinaram o êxito desse processo. De maneira resumida, podemos destacar a presença de água líquida e as condições planetárias propícias para tal empreendimento.
Os processos de síntese, manutenção e replicação característicos das complexas estruturas carbônicas que formam os seres vivos são realizados, principalmente, em meio aquoso. A água é o solvente com o qual as moléculas de carbono em nossos organismos interagem dinamicamente e o meio a partir do qual as trocas materiais e transformações metabólicas podem ocorrer. Apesar de alguns organismos terem sido selecionados por ambientes de baixa disponibilidade de água, nenhum ser vivo terrestre é absolutamente desprovido dessa substância para se autoconduzir.
Por fim, a composição da Terra e sua posição no Sistema Solar são os fatores que sacramentam a vida tal como a conhecemos. Mais especificamente: o fato de nosso planeta ser rochoso; de a atmosfera ser permeável à luz visível, mas refratária a radiações de alta energia; de a atmosfera ser capaz de reter parcialmente o calor das irradiações solares e de o planeta gerar um campo magnético próprio, pelo movimento espontâneo de seu núcleo liquefeito de ferro e níquel, são igualmente fundamentais na organização da vida. Essas condições garantem uma mínima estabilidade química das ligações entre os átomos que compõem as complexas e sensíveis substâncias constituintes de nossa materialidade e de suas transformações. Cabe também mencionar que a composição e a densidade da atmosfera, assim como a distância da Terra em relação ao Sol, propiciam condições adequadas para que a água seja, por aqui, encontrada em seu estado líquido. Além disso, tais características permitem que a amplitude térmica do planeta esteja dentro de um intervalo de temperaturas viáveis para a manutenção da vida. Nem muito quente, nem muito frio.
Uma vez que é oriunda de uma confluência de condições, a vida é, naturalmente, um evento raro, pelo menos dentro de nossa vizinhança interestelar mais próxima. A busca por vida extraterrestre se fundamenta no paradigma de que a forma como os seres vivos se constituem em outros planetas segue a dinâmica terrestre. Buscamos uma vida tal como a conhecemos. Ainda que existam hipóteses de seres constituídos por elementos diferentes do carbono (mais notoriamente, o silício), compostos por outros solventes diferentes da água e estruturados em sistemas de dinâmicas distintas aos encontrados aqui na Terra, por enquanto, tais considerações não ultrapassaram o estatuto de especulação. Apesar disso, devemos ter cautela, pois, como colocado por Carl Sagan, físico e astrônomo norteamericano: a falta de evidência não implica na evidência da falta. A natureza do Universo pode não corresponder ao que achamos que podemos atestar.